Eles rangem a louça do café na despensa
Dos porões
E pelos limites pisoteados da estrada
Sei das almas úmidas das arrumadeiras
Brotando desesperadamente ao redor das porteiras.
A ondulação brônzea da névoa lança a mim
Rostos retorcidos do fundo da rua
E parte, de uma transeunte com a saia enlameada,
Um sorriso incerto que no ar paira
E desaparece ao nível dos telhados.
Tradução: Maurício Borba Filho
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
terça-feira, 8 de setembro de 2009
T.S. Eliot: "Rapsódia de uma noite tempestuosa" (de "Prufrock and Other Observations")
Meia-noite.
Ao longo das estremas da rua
Sitiado em síntese luniforme,
Sussurrando lunares encantamentos,
Esvanesce os pisos da memória
E todos os lúzidos relacionamentos
Suas divisões e precisões.
Todos os postes por que passo
Retumbam como um tambor fatídico
E pelos espaços plenos de negror
A Meia-Noite sacode a memória
Como um louco um gerânio morto com vigor.
Uma e meia,
O poste engasgou
O poste murmurou
O poste disse: ‘ olha aquela mulher
Que hesita em tua direção pela pórtica luzerna
Que rebenta nela como um sorriso.
Vê, a borda do vestido dela
Está rasgada e suja de areia,
E vê como o canto de seu olho
Feito um alfinete arquejado loucamente enverga’
A memória encalhada arremessa aos céus
Uma mixórdia de mesclas distorcidas;
Um ramo sobre a praia retorcido
Sutilmente corroído, e - como
Se o mundo tivesse desistido
De manter o mistério de seu esqueleto
Tenso e alvo, polido.
Uma mola quebrada num jardim de fábrica,
Ferrugem que agarra a forma que a força deixou
Rígida e anelada, prestes a saltar.
Duas e meia,
O poste disse,
‘Olha o gato que se espreguiça na sarjeta,
Desliza a língua lenta
E devora um pouco de rançosa manteiga.’
Então a mão da criança, automática,
Abeirou-se e pôs no bolso um brinquedo que corria solto
pelo cais.
Não pude ver nada pelos olhos daquela criança.
Já vi olhos na estrada
Perscrutando por detrás dos postigos onde luz incidia
E, numa tarde, um caranguejo num charco,
Um velho caranguejo com lunetas sobre o casco,
Agarrou a ponta do graveto com que eu o prendia.
Três e meia,
A lamparina engasgou
A lamparina murmurou na escuridão.
A lamparina zuniu:
‘Olha a lua,
La lune ne garde aucune rancune,
Ela pisca um olho débil,
Ela sorri pelos cantos.
Ela acaricia as tramas de relva.
A lua perdeu sua memória.
Luna varíola esvaecida arrebenta em sua face,
Sua mão enrodilha uma rosa de papel,
Que exala poeira e eau de Cologne,
Ela está só e insone
Com todos os antigos noctiolores
Que rondam e rondam ao redor de seu cérebro.’
A reminiscência vem
De secos gerânios que luz não retêm
E há poeira nas fissuras
Olor de castanha nas ruas,
E olores femininos nas câmaras escuras,
E de cigarro nos vãos
E cheiro de coquetel nos bares.
A lamparina disse,
‘Quatro horas,
Aqui está o número na porta.
Memória!
Tens a chave,
A pequena lamparina anela luz sobre a escada.
Sobe.
O leito está aberto; a escova de dente pende na parede,
Põe os sapatos frente à porta, dorme, prepara-te para a vida’
Da punhalada a última agônica torcida.
Tradução: Maurício Borba Filho
Ao longo das estremas da rua
Sitiado em síntese luniforme,
Sussurrando lunares encantamentos,
Esvanesce os pisos da memória
E todos os lúzidos relacionamentos
Suas divisões e precisões.
Todos os postes por que passo
Retumbam como um tambor fatídico
E pelos espaços plenos de negror
A Meia-Noite sacode a memória
Como um louco um gerânio morto com vigor.
Uma e meia,
O poste engasgou
O poste murmurou
O poste disse: ‘ olha aquela mulher
Que hesita em tua direção pela pórtica luzerna
Que rebenta nela como um sorriso.
Vê, a borda do vestido dela
Está rasgada e suja de areia,
E vê como o canto de seu olho
Feito um alfinete arquejado loucamente enverga’
A memória encalhada arremessa aos céus
Uma mixórdia de mesclas distorcidas;
Um ramo sobre a praia retorcido
Sutilmente corroído, e - como
Se o mundo tivesse desistido
De manter o mistério de seu esqueleto
Tenso e alvo, polido.
Uma mola quebrada num jardim de fábrica,
Ferrugem que agarra a forma que a força deixou
Rígida e anelada, prestes a saltar.
Duas e meia,
O poste disse,
‘Olha o gato que se espreguiça na sarjeta,
Desliza a língua lenta
E devora um pouco de rançosa manteiga.’
Então a mão da criança, automática,
Abeirou-se e pôs no bolso um brinquedo que corria solto
pelo cais.
Não pude ver nada pelos olhos daquela criança.
Já vi olhos na estrada
Perscrutando por detrás dos postigos onde luz incidia
E, numa tarde, um caranguejo num charco,
Um velho caranguejo com lunetas sobre o casco,
Agarrou a ponta do graveto com que eu o prendia.
Três e meia,
A lamparina engasgou
A lamparina murmurou na escuridão.
A lamparina zuniu:
‘Olha a lua,
La lune ne garde aucune rancune,
Ela pisca um olho débil,
Ela sorri pelos cantos.
Ela acaricia as tramas de relva.
A lua perdeu sua memória.
Luna varíola esvaecida arrebenta em sua face,
Sua mão enrodilha uma rosa de papel,
Que exala poeira e eau de Cologne,
Ela está só e insone
Com todos os antigos noctiolores
Que rondam e rondam ao redor de seu cérebro.’
A reminiscência vem
De secos gerânios que luz não retêm
E há poeira nas fissuras
Olor de castanha nas ruas,
E olores femininos nas câmaras escuras,
E de cigarro nos vãos
E cheiro de coquetel nos bares.
A lamparina disse,
‘Quatro horas,
Aqui está o número na porta.
Memória!
Tens a chave,
A pequena lamparina anela luz sobre a escada.
Sobe.
O leito está aberto; a escova de dente pende na parede,
Põe os sapatos frente à porta, dorme, prepara-te para a vida’
Da punhalada a última agônica torcida.
Tradução: Maurício Borba Filho
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
T.S. Eliot - "Prelúdios" (de "Prufrock and Other Observations")
I
A noite de inverno nebula
A noite de inverno nebula
Com o cheiro de carne pelos corredores
Seis horas.
Os termos tépidos de dias de névoa e torpores
Uma ira tempestuosa banha e envolve,
Agora, os resquícios torpes
De folhas dispersas aos nossos pés
E jornais tragados dos terrenos baldios;
A rajada ressoa
Em chaminés e anteparos vazios,
E pela esquina evapora e ecoa
Um solitário coche sem cocheiro.
E então o luzir dos candeeiros.
II
II
O Nascente encara em consciência
Um débil odor de cerveja choca,
Da estrada poeirenta e rota
Tensa pelas pegadas dos pés d’alvorecer enlameados
Até as velhas cafeterias.
Com outros disfarces
Que o tempo traz atados,
Alguém pensa nas mãos e grafias
Que erguem as sombras num enlace
Em centenas de quartos cercados por mobília.
III
Tu lançaste da cama o lençol,
Deitando as costas esperaste;
Entre cochilo assististe à noite revelar
As centenas de imagens sórdidas
Que encerram tua alma;
Contra o teto ficaram a chicotear.
E quando o mundo tornou às avessas
E a luz crepitou entre as venezianas,
E ouviste o pardal pelas sarjetas
Tiveste tal visão da rua
Como nem a rua compreende;
Sentada à beira da cama, onde
Encaracolavas os papiros dos cabelos,
Ou acolchetavas as solas dos pés em âmbar
Nas palmas sujas das mãos; ambas.
IV
IV
Sua alma firme estendida pelo céu
Que desaparece por detrás dos prédios,
Ou pisoteada por pés inquietos
Às quatro ou cinco ou seis da tarde;
E cachimbos preenchidos por dedos nédios,
E edições noturnas, um olhar profundo
Certo de certas certezas,
A consciência de uma rua escurecida
Impaciente para aceitar o mundo.
Sou incitado por fantasias que circundam
Essas imagens:
A noção de alguma infinitamente gentil
Infinitamente sôfrega sombra elas seguram.
Esfrega a mão ao redor da boca e ri;
Os mundos revolvem como anciãs
Colhendo lenha pelos becos.
Tradução: Maurício Borba Filho
domingo, 6 de setembro de 2009
T.S. Eliot: "Retrato de uma Dama" (de "Prufrock and Other Observations")
Thou hast commited-
Fornication: but that was in another country,
And besides, the wench is dead.
-The Jew of Malta
I
Em meio à fumaça e cerração de uma tarde de Dezembro
Tens a cena montada – assim aparenta ser –
Com ‘eu guardei para ti esta pós-sesta’;
E postas quatro velas de cera no quarto oscuro,
Quatro luzernas aneladas no teto,
Atmosfera de Julieta o túmulo
Preparada para tudo ser ou ficar por ser dito.
Ficamos por aqui, permita-nos dizer, para ouvir o Polonês
Transmitir os Prelúdios, por seus cabelos e
pelas pontas dos dedos.
‘Tão íntimo, esse Chopin, que sua alma
Deveria ressurgir apenas entre amigos, acho,
Dois ou três, que não tocarão a juventude florescente
Exaurida na sala de concerto adjacente’.
- E a conversa flui
De veleidades e mansos arrependimentos
Até tons atenuados de violinos
Mesclados às remotas cornetas
E então começa.
‘Não sabes o quanto eles significam para mim,
os meus amigos,
E quão, quão raro e estranho é achar
Numa vida tão tragada em indefinições e termos
(que na verdade te não amo...sabes? És não
tão cego!
Quão tu veemente és!)
Achar um amigo grato dessas qualidades,
Que as tem e doa -
Estas sobre as quais a amizade se aperfeiçoa.
Quanto significa que to diga –
Sem essas amizades - vida, que cauchemar!’*
Entre o desenrolar dos violinos
E as arietas
De gagas cornetas
Em meu cérebro dentro um tom-tom obtuso começa
Martelando absurdamente um próprio prelúdio,
De um monótono espúrio
Que afinal de contas é uma definitiva ‘nota falsa’.
- Permita-nos sorver o ar, num espiralar de tabaco,
Admirar os monumentos,
Discutir os últimos eventos,
Ajustar nossos relógios pelos relógios públicos.
E após, sentar por meia hora e tomar nosso trago túrgido.
II
Agora que os botões de lilases florescem
Tem ela rente ao leito um jarro de lilases jorrando
E com um brinca entre os dedos, falando.
‘Ah, meu amigo, não sabes, não sabes
O que é a vida, que a tens dentre as mãos’;
(lentamente torcendo da flor o talo)
‘Deixas-la fluir de ti, deixas fluir,
E a juventude é cruel, e não guarda remorsos
E sorri em situações incompreensíveis. ’
Eu sorrio, logicamente,
E continuo a tomar o chá.
‘Mesmo com esses poentes de Abril, que de alguma forma
Recordam-me vida ida, Paris na Primavera,
Sinto-me imensuravelmente pacífica, e percebo o mundo
Maravilhoso e brioso jovem, apesar de tudo. ’
A voz retorna como o tom desafinado
E insistente de um velho violino no ocaso augustiado¹.
‘E estou certa sempre de que compreendes
Meus sentimentos, sempre certa de que sentes,
Que cruzando o abismo aprendes.
És invulnerável, não tens Calcanhar de Aquiles.
Tu continuarás, e quando fores bem sucedido
Dirás: nesse ponto muitos viram o sucesso perdido.
Mas o que tenho eu, o que tenho, meu amigo,
Para dar-te, o que podes de mim receber?
Apenas a amizade, a compaixão como abrigo
De alguém cuja jornada ao fim chega a ver,
Sentar aqui, servindo chá, é o que cabe a mim... ’
Tiro o chapéu: como posso covardemente consolá-la,
Àquela que me disse tais coisas?
Verás-me qualquer manhã no parque ao largo
Lendo as anedotas e a página esportiva.
Particularmente remarco -
Uma condessa inglesa sobe ao palco, altiva.
Um grego foi morto durante a polca,
Um fraudador confessou, ousado.
Conservo minha calma, que não é pouca,
Continuo centrado.
Exceto quando um piano de rua, mecânico e cansado
Reitera alguma cantiga ordinária
Com o perfume de jacintos ao longo do jardim
Remontando o que outras pessoas têm desejado.
Essas idéias são certas ou erradas?
III
A noite de Outubro desaba: voltando como outrora
Exceto por uma sensação selênica de embaraço
Subo as escadas e enrosco a maçaneta da porta
E sinto, após, um célere cansaço.
‘Então irás ao estrangeiro; quando voltarás?
Mas isso é uma pergunta inútil
Mal sabes quando voltarás,
Tu encontrarás tanto o que aprender. ’
Meu sorriso queda bruto sobre o bric-à-brac.
‘Poderias talvez me escrever ’
Meu autocontrole cintila flâmulo por um segundo;
E foi por esse ângulo que percebi.
‘Ultimamente tenho ponderado
(mas nossos fins e começos são desencontrados)
Por que nunca fomos amigos acertados!’
Sinto-me como alguém que ri, e vê sua expressão
No espelho, quando subitamente se volta.
Meu autocontrole sucumbe, e estamos mesmo na escuridão.
‘Todos disseram, todos os nossos amigos,
Estavam certos de que nossos sentimentos encerravam
Tão próximos! Eu mesma mal posso entender.
Deixemos isso nas mãos do destino.
Tu escreverás, assim estimo.
Talvez o tempo esteja no seu cimo.
E devo sentar aqui, servindo chá aos amigos. ’
E devo apossar-me de cada forma inconstante
Para achar uma expressão... dança, dança
Como um urso dançante.
Berra como um papagaio, tagarela feito um macaco
Deixa-nos sorver o ar, numa trama de tabaco ondulante.
Bem! E se ela morresse numa tarde,
Uma tarde pálida e nebulosa, lúteo poente escarlate;
Morresse deixando-me caneta em mãos, e à parte
A fumaça fugindo quedada sobre os telhados;
Indeciso, por um momento
Sem saber o que sentir ou compreender
Seja sabia ou tolamente, tardia ou brevemente...
Ela não teria, afinal de contas, a sorte?
Essa música triunfa com uma ‘angústia outonal’
Agora que conversamos sobre a morte –
Teria o direito de sorrir?
Tradução: Maurício Borba Filho
Fornication: but that was in another country,
And besides, the wench is dead.
-The Jew of Malta
I
Em meio à fumaça e cerração de uma tarde de Dezembro
Tens a cena montada – assim aparenta ser –
Com ‘eu guardei para ti esta pós-sesta’;
E postas quatro velas de cera no quarto oscuro,
Quatro luzernas aneladas no teto,
Atmosfera de Julieta o túmulo
Preparada para tudo ser ou ficar por ser dito.
Ficamos por aqui, permita-nos dizer, para ouvir o Polonês
Transmitir os Prelúdios, por seus cabelos e
pelas pontas dos dedos.
‘Tão íntimo, esse Chopin, que sua alma
Deveria ressurgir apenas entre amigos, acho,
Dois ou três, que não tocarão a juventude florescente
Exaurida na sala de concerto adjacente’.
- E a conversa flui
De veleidades e mansos arrependimentos
Até tons atenuados de violinos
Mesclados às remotas cornetas
E então começa.
‘Não sabes o quanto eles significam para mim,
os meus amigos,
E quão, quão raro e estranho é achar
Numa vida tão tragada em indefinições e termos
(que na verdade te não amo...sabes? És não
tão cego!
Quão tu veemente és!)
Achar um amigo grato dessas qualidades,
Que as tem e doa -
Estas sobre as quais a amizade se aperfeiçoa.
Quanto significa que to diga –
Sem essas amizades - vida, que cauchemar!’*
Entre o desenrolar dos violinos
E as arietas
De gagas cornetas
Em meu cérebro dentro um tom-tom obtuso começa
Martelando absurdamente um próprio prelúdio,
De um monótono espúrio
Que afinal de contas é uma definitiva ‘nota falsa’.
- Permita-nos sorver o ar, num espiralar de tabaco,
Admirar os monumentos,
Discutir os últimos eventos,
Ajustar nossos relógios pelos relógios públicos.
E após, sentar por meia hora e tomar nosso trago túrgido.
II
Agora que os botões de lilases florescem
Tem ela rente ao leito um jarro de lilases jorrando
E com um brinca entre os dedos, falando.
‘Ah, meu amigo, não sabes, não sabes
O que é a vida, que a tens dentre as mãos’;
(lentamente torcendo da flor o talo)
‘Deixas-la fluir de ti, deixas fluir,
E a juventude é cruel, e não guarda remorsos
E sorri em situações incompreensíveis. ’
Eu sorrio, logicamente,
E continuo a tomar o chá.
‘Mesmo com esses poentes de Abril, que de alguma forma
Recordam-me vida ida, Paris na Primavera,
Sinto-me imensuravelmente pacífica, e percebo o mundo
Maravilhoso e brioso jovem, apesar de tudo. ’
A voz retorna como o tom desafinado
E insistente de um velho violino no ocaso augustiado¹.
‘E estou certa sempre de que compreendes
Meus sentimentos, sempre certa de que sentes,
Que cruzando o abismo aprendes.
És invulnerável, não tens Calcanhar de Aquiles.
Tu continuarás, e quando fores bem sucedido
Dirás: nesse ponto muitos viram o sucesso perdido.
Mas o que tenho eu, o que tenho, meu amigo,
Para dar-te, o que podes de mim receber?
Apenas a amizade, a compaixão como abrigo
De alguém cuja jornada ao fim chega a ver,
Sentar aqui, servindo chá, é o que cabe a mim... ’
Tiro o chapéu: como posso covardemente consolá-la,
Àquela que me disse tais coisas?
Verás-me qualquer manhã no parque ao largo
Lendo as anedotas e a página esportiva.
Particularmente remarco -
Uma condessa inglesa sobe ao palco, altiva.
Um grego foi morto durante a polca,
Um fraudador confessou, ousado.
Conservo minha calma, que não é pouca,
Continuo centrado.
Exceto quando um piano de rua, mecânico e cansado
Reitera alguma cantiga ordinária
Com o perfume de jacintos ao longo do jardim
Remontando o que outras pessoas têm desejado.
Essas idéias são certas ou erradas?
III
A noite de Outubro desaba: voltando como outrora
Exceto por uma sensação selênica de embaraço
Subo as escadas e enrosco a maçaneta da porta
E sinto, após, um célere cansaço.
‘Então irás ao estrangeiro; quando voltarás?
Mas isso é uma pergunta inútil
Mal sabes quando voltarás,
Tu encontrarás tanto o que aprender. ’
Meu sorriso queda bruto sobre o bric-à-brac.
‘Poderias talvez me escrever ’
Meu autocontrole cintila flâmulo por um segundo;
E foi por esse ângulo que percebi.
‘Ultimamente tenho ponderado
(mas nossos fins e começos são desencontrados)
Por que nunca fomos amigos acertados!’
Sinto-me como alguém que ri, e vê sua expressão
No espelho, quando subitamente se volta.
Meu autocontrole sucumbe, e estamos mesmo na escuridão.
‘Todos disseram, todos os nossos amigos,
Estavam certos de que nossos sentimentos encerravam
Tão próximos! Eu mesma mal posso entender.
Deixemos isso nas mãos do destino.
Tu escreverás, assim estimo.
Talvez o tempo esteja no seu cimo.
E devo sentar aqui, servindo chá aos amigos. ’
E devo apossar-me de cada forma inconstante
Para achar uma expressão... dança, dança
Como um urso dançante.
Berra como um papagaio, tagarela feito um macaco
Deixa-nos sorver o ar, numa trama de tabaco ondulante.
Bem! E se ela morresse numa tarde,
Uma tarde pálida e nebulosa, lúteo poente escarlate;
Morresse deixando-me caneta em mãos, e à parte
A fumaça fugindo quedada sobre os telhados;
Indeciso, por um momento
Sem saber o que sentir ou compreender
Seja sabia ou tolamente, tardia ou brevemente...
Ela não teria, afinal de contas, a sorte?
Essa música triunfa com uma ‘angústia outonal’
Agora que conversamos sobre a morte –
Teria o direito de sorrir?
Tradução: Maurício Borba Filho
sábado, 5 de setembro de 2009
T.S. Eliot: "A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock" (de "Prufrock and Other Observations")
S´io credessi che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma per ciò che giammai di questo fondo
Non tornò vivo alcun, s´i´odo il vero,
Senza tema d´infamia ti rispondo.
Sigamos então, tu e eu,
Quando se estende no céu o ocaso
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por entre ruas quase desertas,
Os múrmuros refúgios de certas
Noites insones em hotéis baratos
E poeirentos restaurantes oclusos de cerração com ostras e cascos:
Estradas que se estambram como um lúrido argumento
Cujo insidioso intento
É conduzir-te até uma tonítrua questão...
Oh, não perguntes, “Qual seria essa de pasmar?”
Apenas deixa a nossa visita continuar.
No quarto as mulheres seguem falando
Vêm e vão, sobre Michelangelo.
A lútea neblina que esfrega sua espinha sobre
as vidraças,
A pálida fumaça que reprega seu focinho
nas vidraças,
Roçava a língua nos extremos do poente,
Expandia-se lânguida pelos parcos charcos drenados,
Deixava cair sobre as costas fuligem das chaminés premente,
Esgueirou-se pelo terraço, deu giro súbito e em seguida,
Percebendo que era uma doce noite de Outubro,
Espiralou-se ao redor da casa e quedou adormecida.
E de fato tempo haverá
Para a pálida fumaça que flui pela estrada
Esflorando sua espádua sobre as vidraças;
Tempo terá, tempo haverá
Para compor um rosto que possa enfrentar rostos a defrontar-te;
Um tempo para destruir e obrar,
E tempo para todos os deveres, fábulas e truques
Que entornam no teu prato um pronto divagar;
Tempo para mim e para ti, terá,
E tempo ainda para uma centena de indecisões
E para uma miríade de visões e revisões
Antes da hora do chá.
No quarto as mulheres seguem falando
Vêm e vão, sobre Michelangelo.
E de fato tempo haverá
Para perguntar-se, ‘Eu ousaria?’ e, ‘Ousaria?’
Um momento para voltar-se e descer a escada,
No meio dos cabelos uma brecha calva –
(Eles dirão: ‘Como crescem ralos seus cabelos!’)
Meu fraque, meu colarinho firme rente
ao queixo,
Minha gravata elegante e modesta, mas firmada por
um alfinete simples, sem desleixo –
(Eles dirão: ‘Mas como é frágil dos seus membros o eixo’)
Ousarei
Estorvar o universo?
Num minuto tempo há
Para decisões e revisões que um minuto
porá ao inverso.
Porque já conheço a todos, a todos conheço
e tal-
Conheço as tardes, noites e dias,
Minha vida com colheres de chá tive medida;
Conheço as vozes esvoaçando com uma agonia outonal,
Na música de uma câmara longínqua mantidas.
Logo, como vou supor?
E já conheci os olhos, a todos vou
conhecendo –
Os olhos que te fixam numa frase formulada,
E quando estiver formulado, ao redor d’um alfinete num frêmito
Quando estiver crucificado e numa parede me contorcendo,
Então como começar meu intento
De desprezar todo o contrito cotidiano de meus jeitos e trejeitos?
E logo como vou supor?
E conheci então os braços, conheço
de todos uma parte –
Braços ornados com braceletes, aos quais cândida nudez se inclina
(Mas matizado com claro pêlo castanho, à luz da lamparina!)
Seria de um vestido o perfume
Que me prende nesse pensar impune?
Braços que repousam sobre a mesa, ou envolvidos por um xale.
E então devo ponderar?
E como devo começar?
***
Devo dizer que andei durante o crepúsculo por
estradas estreitas
E vi a fumaça a se formar dos cachimbos
De homens solitários à esportiva, inclinando-se para fora
das janelas? ...
Devo ter sido transformado num par de garras serradas
Rondando num urro os pavimentos silentes do mar.
***
E as tardes, os poentes, adormecem tão pacificamente!
Acariciados por longos dedos,
Sonolentos... fatigados... ou se fingindo doentes
Estirados no chão, aqui entre mim e ti.
Terei eu, depois dos bolos e sorvetes e chás,
A força para o momento à sua crise forçar?
Mesmo tendo chorado e jejuado, pranteado e orado,
Mesmo tendo visto minha cabeça (cada vez mais calva)
sendo trazida numa travessa,
E não é de grande espanto não ser nenhum profeta;
Vi meu momento de glória tremeluzir
E o eterno Criado segurar meu casaco, e
Escarnir,
E resumindo, eu estava assustado.
E valeria a pena, onde nos vemos agora,
Depois das bebidas, da marmelada e do chá
Entre a porcelana, entre tu e eu a conversar
Valeria então a pena,
Ter encarado com um sorriso o problema,
Ter comprimido o universo numa bola
E atirá-lo até uma espantosa questão,
Dizer: ‘Sou Lázaro, dos mortos vindo
Volto para dizer-lhes, para alertar-vos –
Se alguém, botando-lhe um travesseiro sob a cabeça, quase dormindo
Dissesse: ‘Não foi nada disso que eu quis dizer
Nada disso, não’
E teria valido a pena, depois de tudo,
Teria então sido proveitoso,
Depois dos poentes e recintos e das estradas
Estreladas,
Depois dos romances, xícaras de chá, depois das saias
a insinuarem-se sobre o chão –
E isto, e tanto mais? –
É impossível dizer o que realmente sinto ou quero!
Como se uma lanterna mágica modelasse os nervos
numa tela tecendo arranjo mero:
Teria então sido proveitoso
Se alguém, arranjando um travesseiro ou atirando um xale,
Voltando-se para a janela, dissesse:
‘Nada disto vale,
Isto eu não quis dizer, definitivo’
***
Não! Não sou Príncipe Hamlet, e nem para isso fui feito;
Sou um mero conselheiro, um dos que
Envergam um progresso, começam até duas ou cena única
Aconselham ao príncipe; um pronto instrumento eleito, sem dúvida.
Deferente, alegre por ser de uso,
Prudente, meticuloso e político
Com certa altivez, porém um pouco obtuso;
Na verdade, às vezes quase ridículo –
Por vezes quase o grande Tolo recluso.
Eu envelheço... envelheço...
Devo usar minhas bainhas dobradas com apreço.
Devo então partir meu cabelo? Ousarei provar um
pêssego?
Devo usar calças alvas de flanela, e caminhar pelas
praias e dunas.
Já ouvi as sereias cantarem, uma a uma.
E creio que elas nunca cantarão para mim.
Eu as vi navegando nos mares pelas ondas
As cândidas comas das vagas para trás penteando
Quando o vento tenebra em sopro a água alva, brando.
Desfalecemo-nos pelas câmaras do mar
Ao lado das ninfas coroadas com rubras algas e encantos
Até que vozes humanas acordam-nos, e afundamos.
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma per ciò che giammai di questo fondo
Non tornò vivo alcun, s´i´odo il vero,
Senza tema d´infamia ti rispondo.
Sigamos então, tu e eu,
Quando se estende no céu o ocaso
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por entre ruas quase desertas,
Os múrmuros refúgios de certas
Noites insones em hotéis baratos
E poeirentos restaurantes oclusos de cerração com ostras e cascos:
Estradas que se estambram como um lúrido argumento
Cujo insidioso intento
É conduzir-te até uma tonítrua questão...
Oh, não perguntes, “Qual seria essa de pasmar?”
Apenas deixa a nossa visita continuar.
No quarto as mulheres seguem falando
Vêm e vão, sobre Michelangelo.
A lútea neblina que esfrega sua espinha sobre
as vidraças,
A pálida fumaça que reprega seu focinho
nas vidraças,
Roçava a língua nos extremos do poente,
Expandia-se lânguida pelos parcos charcos drenados,
Deixava cair sobre as costas fuligem das chaminés premente,
Esgueirou-se pelo terraço, deu giro súbito e em seguida,
Percebendo que era uma doce noite de Outubro,
Espiralou-se ao redor da casa e quedou adormecida.
E de fato tempo haverá
Para a pálida fumaça que flui pela estrada
Esflorando sua espádua sobre as vidraças;
Tempo terá, tempo haverá
Para compor um rosto que possa enfrentar rostos a defrontar-te;
Um tempo para destruir e obrar,
E tempo para todos os deveres, fábulas e truques
Que entornam no teu prato um pronto divagar;
Tempo para mim e para ti, terá,
E tempo ainda para uma centena de indecisões
E para uma miríade de visões e revisões
Antes da hora do chá.
No quarto as mulheres seguem falando
Vêm e vão, sobre Michelangelo.
E de fato tempo haverá
Para perguntar-se, ‘Eu ousaria?’ e, ‘Ousaria?’
Um momento para voltar-se e descer a escada,
No meio dos cabelos uma brecha calva –
(Eles dirão: ‘Como crescem ralos seus cabelos!’)
Meu fraque, meu colarinho firme rente
ao queixo,
Minha gravata elegante e modesta, mas firmada por
um alfinete simples, sem desleixo –
(Eles dirão: ‘Mas como é frágil dos seus membros o eixo’)
Ousarei
Estorvar o universo?
Num minuto tempo há
Para decisões e revisões que um minuto
porá ao inverso.
Porque já conheço a todos, a todos conheço
e tal-
Conheço as tardes, noites e dias,
Minha vida com colheres de chá tive medida;
Conheço as vozes esvoaçando com uma agonia outonal,
Na música de uma câmara longínqua mantidas.
Logo, como vou supor?
E já conheci os olhos, a todos vou
conhecendo –
Os olhos que te fixam numa frase formulada,
E quando estiver formulado, ao redor d’um alfinete num frêmito
Quando estiver crucificado e numa parede me contorcendo,
Então como começar meu intento
De desprezar todo o contrito cotidiano de meus jeitos e trejeitos?
E logo como vou supor?
E conheci então os braços, conheço
de todos uma parte –
Braços ornados com braceletes, aos quais cândida nudez se inclina
(Mas matizado com claro pêlo castanho, à luz da lamparina!)
Seria de um vestido o perfume
Que me prende nesse pensar impune?
Braços que repousam sobre a mesa, ou envolvidos por um xale.
E então devo ponderar?
E como devo começar?
***
Devo dizer que andei durante o crepúsculo por
estradas estreitas
E vi a fumaça a se formar dos cachimbos
De homens solitários à esportiva, inclinando-se para fora
das janelas? ...
Devo ter sido transformado num par de garras serradas
Rondando num urro os pavimentos silentes do mar.
***
E as tardes, os poentes, adormecem tão pacificamente!
Acariciados por longos dedos,
Sonolentos... fatigados... ou se fingindo doentes
Estirados no chão, aqui entre mim e ti.
Terei eu, depois dos bolos e sorvetes e chás,
A força para o momento à sua crise forçar?
Mesmo tendo chorado e jejuado, pranteado e orado,
Mesmo tendo visto minha cabeça (cada vez mais calva)
sendo trazida numa travessa,
E não é de grande espanto não ser nenhum profeta;
Vi meu momento de glória tremeluzir
E o eterno Criado segurar meu casaco, e
Escarnir,
E resumindo, eu estava assustado.
E valeria a pena, onde nos vemos agora,
Depois das bebidas, da marmelada e do chá
Entre a porcelana, entre tu e eu a conversar
Valeria então a pena,
Ter encarado com um sorriso o problema,
Ter comprimido o universo numa bola
E atirá-lo até uma espantosa questão,
Dizer: ‘Sou Lázaro, dos mortos vindo
Volto para dizer-lhes, para alertar-vos –
Se alguém, botando-lhe um travesseiro sob a cabeça, quase dormindo
Dissesse: ‘Não foi nada disso que eu quis dizer
Nada disso, não’
E teria valido a pena, depois de tudo,
Teria então sido proveitoso,
Depois dos poentes e recintos e das estradas
Estreladas,
Depois dos romances, xícaras de chá, depois das saias
a insinuarem-se sobre o chão –
E isto, e tanto mais? –
É impossível dizer o que realmente sinto ou quero!
Como se uma lanterna mágica modelasse os nervos
numa tela tecendo arranjo mero:
Teria então sido proveitoso
Se alguém, arranjando um travesseiro ou atirando um xale,
Voltando-se para a janela, dissesse:
‘Nada disto vale,
Isto eu não quis dizer, definitivo’
***
Não! Não sou Príncipe Hamlet, e nem para isso fui feito;
Sou um mero conselheiro, um dos que
Envergam um progresso, começam até duas ou cena única
Aconselham ao príncipe; um pronto instrumento eleito, sem dúvida.
Deferente, alegre por ser de uso,
Prudente, meticuloso e político
Com certa altivez, porém um pouco obtuso;
Na verdade, às vezes quase ridículo –
Por vezes quase o grande Tolo recluso.
Eu envelheço... envelheço...
Devo usar minhas bainhas dobradas com apreço.
Devo então partir meu cabelo? Ousarei provar um
pêssego?
Devo usar calças alvas de flanela, e caminhar pelas
praias e dunas.
Já ouvi as sereias cantarem, uma a uma.
E creio que elas nunca cantarão para mim.
Eu as vi navegando nos mares pelas ondas
As cândidas comas das vagas para trás penteando
Quando o vento tenebra em sopro a água alva, brando.
Desfalecemo-nos pelas câmaras do mar
Ao lado das ninfas coroadas com rubras algas e encantos
Até que vozes humanas acordam-nos, e afundamos.
Tradução: Maurício Borba Filho
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